Rubem Alves Filósofo e professor da
Unicamp (Faculdade de Educação)
Era uma vez um granjeiro. Era um
granjeiro incomum, intelectual e progressista.
Estudou administração, para que sua granja funcionasse cientificamente.
Não satisfeito, fez um doutorado em criação de galinhas.
No curso de administração, aprendeu que, num negócio, o essencial é a
produtividade. O improdutivo dá prejuízo; deve, portanto, ser eliminado.
Aplicado à criação de galinhas, esse princípio se traduz assim: galinha
que não bota ovo não vale a ração que come. Não pode ocupar espaço no
galinheiro. Deve, portanto, ser transformada em cubinhos de caldo de galinha.
Com o propósito de garantir a qualidade total de sua granja, o granjeiro
estabeleceu um rigoroso sistema de controle da produtividade de suas galinhas.
“Produtividade de galinhas” é um conceito matemático que se obtém dividindo-se
o número de ovos botados pela unidade de tempo escolhida. Galinhas cujo índice
de produtividade fosse igual ou superior a 250 ovos por ano podiam continuar a
viver na granja como galinhas poedeiras. O granjeiro estabeleceu, inclusive, um
sistema de “mérito galináceo”: as galinhas que botavam mais ovos recebiam mais
ração. As galinhas que botavam menos ovos recebiam menos ração.
As galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou inferior a 249
ovos por ano não tinham mérito algum e eram transformadas em cubinhos de caldo
de galinha.
Acontece que conviviam com as galinhas poedeiras, galináceos peculiares
que se caracterizavam por um hábito curioso. A intervalos regulares e sem razão
aparente, eles esticavam os pescoços, abriam os bicos e emitiam um ruído
estridente e, ato contínuo, subiam nas costas das galinhas, seguravam-nas pelas
cristas com o bico e obrigavam-nas a se agachar. Consultados os relatórios de
produtividade, verificou o granjeiro que isso era tudo o que os galos – esse
era o nome daquelas aves – faziam. Ovos, mesmo, nunca, jamais, em toda a
história da granja, qualquer um deles botara. Lembrou-se o granjeiro, então,
das lições que aprendera na escola, e ordenou que todos os galos fossem
transformados em cubos de caldo de galinha.
As galinhas continuaram a botar ovos como sempre haviam botado: os
números escritos nos relatórios não deixavam margens a dúvidas. Mas uma coisa
estranha começou a acontecer. Antes, os ovos eram colocados em chocadeiras e,
ao final de vinte e um dias, eles se quebravam e de dentro deles saíam
pintinhos vivos. Agora, os ovos das mesmas galinhas,depois de vinte e um dias,
não quebravam. Ficavam lá, inertes. Deles não saíam pintinhos. E, se ali
continuassem por muito tempo, estouravam e de dentro deles o que saía era um
cheiro de coisa podre. Coisa morta.
Aí o granjeiro científico aprendeu duas coisas:
Primeiro: o que importa não
é a quantidade dos ovos; o que importa é o que vai dentro deles. A forma dos
ovos é enganosa. Muitos ovos lisinhos por fora são podres por dentro.
Segundo: há coisas de valor
superior aos ovos, que não podem ser medidas por meio de números. “Coisas sem
as quais os ovos são coisas mortas”.
Esta parábola é sobre a universidade. As galinhas poedeiras são os
docentes. Corrijo-me: docente, não. Porque docente quer dizer “aquele que
ensina”. Mas o ensino é, precisamente, uma atividade que não pode ser traduzida
em ovos; não pode ser expressa em termos numéricos. A designação correta é
pesquisadores, isto é aqueles que produzem artigos e os publicam em revistas
internacionais indexadas.
Artigos como os ovos, podem ser contados e computados nas colunas certas
dos relatórios.
As revistas internacionais são os ninhos acreditados. Não basta botar
ovos. É preciso botá-los nos ninhos acreditados. São os ninhos internacionais,
em língua estrangeira, que dão aos ovos sua dignidade e valor. A
comunidade dos produtores de artigos científicos não fala português. Fala
inglês.
Como resultado da pressão “publish or perish”, bote ovos ou sua cabeça
será cortada, a docência termina por perder o sentido. Quem, numa universidade,
só ensina, não vale nada. Os alunos passam a ser trambolhos para os
pesquisadores: estes, em vez de se dedicarem à tarefa institucionalmente
significativa de botar ovos, são obrigados pela presença de alunos a gastar seu
tempo numa tarefa irrelevante: ensino não pode ser quantificado (quem disser
que o ensino se mede pelo número de horas/aula é um idiota).
O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as
prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é
desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para
atender a exigência da comunidade científica internacional de “publish or
perish”.
Eu acho que o objetivo das escolas e
universidades é contribuir para o bem estar do povo. Por isso, sua tarefa mais
importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o
pensamento que se faz um povo. Mas isso não pode ser quantificado como se
quantificam ovos botados. Sugiro que nossas universidades, ao avaliar a produtividade
dos que trabalham nela, deem mais atenção ao canto do galo…
Referência Utilizada:
In: ALVES, Rubem. Entre
a Ciência e a Sapiência. O Dilema da Educação. 6ªed. São Paulo: Ed. Loyola,
2001. p. 67-71.